Por
Luciano Carlos Cunha
A maioria das
discussões em torno dos experimentos feitos com animais não humanos tem girado
em torno da necessidade ou não necessidade dos mesmos. De um lado, os que usam
os animais defendem ser necessário o uso em pelo menos alguns experimentos. Do
outro, alguns ativistas respondem apontando os riscos de se extrapolar dados de
uma espécie para outra e outros problemas técnicos com a experimentação. Eu
acredito que o debate se centrar nessa questão é um resultado infeliz, pois dá
a entender que ambos os lados do debate assumem a seguinte premissa: “se um
determinado meio é necessário para se chegar a um determinado fim, então esse
fim e esse meio estão automaticamente justificados”.
Quando percebemos
esse ponto, vemos que essa premissa é altamente questionável. Vamos supor que o
objetivo de pelo menos alguns experimentos seja o de curar doenças. Esse fim é
justificável, até louvável. Mas, segue daí que qualquer meio para se chegar a
um fim louvável é automaticamente justificado, desde que seja necessário para
se chegar nesse fim? A maioria de nós, incluindo os que experimentam em
animais, não concordaria com essa conclusão. Imagine que, para se curar uma
determinada doença fosse necessário assassinar e torturar algumas crianças. A
maioria de nós defenderia que é um erro fazer isso, e que os cientistas
deveriam buscar descobrir outro meio de procurar curar a doença. Assim sendo, a
discussão não deveria girar em torno da necessidade ou não da experimentação
animal, já que podem existir razões que mostrem que, mesmo sendo necessária em
alguns casos, ainda assim ela não se justifica (discuto melhor essas razões
abaixo).
O que precisa ficar
claro é que o ponto central do debate não deve ser o que está sendo até agora.
A questão central é que os animais que são utilizados o são porque não
pertencem à espécie humana. Quando se desfavorece alguém por não pertencer a
determinada espécie, o nome disso é especismo (da mesma maneira que
desfavorecer alguém que não pertence a determinada raça chama-se racismo).
Então, o ponto central deveria ser perguntar por que se acredita que é correto
fazer experimentos em animais não humanos (ou usar para outros fins, como
comer), mas não é correto usar seres humanos. Para explorar melhor esse ponto,
vou sugerir um experimento mental: suponha que ficasse provado que experimentar
em humanos é tecnicamente mais eficaz e, além disso, necessário para se curar
uma determinada doença. O que poderia explicar o erro de se usar humanos nesse
caso e que ao mesmo tempo explique que não é um erro utilizar animais não
humanos?
O que poderia
justificar o especismo? Para a maioria, a diferença parece óbvia: “como alguém
não poderia perceber a diferença moralmente relevante entre humanos e animais
de outras espécies?”. Mas, e que diferença seria essa? Não pode ser o mero fato
de uns serem humanos e outros não, porque isso não explica nada. Não pode ser o
fato de humanos serem mais racionais do que outros animais, porque nem todos os
humanos são racionais (recém nascidos, crianças muito pequenas, idosos senis,
portadores de determinadas doenças mentais, comatosos: existem animais não
humanos muito mais racionais do que estes humanos). Aliás, em se tratando de
humanos não racionais, ao invés de os utilizarmos como comida ou modelo de
testes damos atenção primordial aos seus cuidados, já que são mais vulneráveis
e mais dependentes de nós. Então, apontar que os não humanos são menos
racionais só mostraria que os cuidados sobre eles deveriam ser muito maiores;
tão grandes quanto aquele que geralmente temos para com um bebê.
E quanto a apontar
que na natureza o mais forte subjuga o mais fraco; os animais comem uns aos
outros; e cada animal favorece aos da sua própria espécie? Teria poder para
justificar o especismo? Não, porque isso seria assumir a seguinte premissa: “se
algo é natural, então é justificado”. O problema com essa premissa aparece logo
que perguntamos o que se quer dizer com o termo “natural”. No sentido que é
empregue nesse argumento, quer dizer que é algo que acontece sem intervenção
deliberada humana, ou que segue os processos evolutivos inconscientes. Mas,
então, por que isso seria relevante moralmente? No que apontar que algo
simplesmente acontece sem intervenção humana ou planejamento racional seria
relevante para nos dar razões para agir dessa ou daquela forma? Não parece
contraditório buscar razões para agir justamente em processos que, desde
Darwin, sabemos que não são processos racionais? É curioso que alguns
cientistas, muitos dos quais aceitam a teoria da evolução, baseiem-se nessa
premissa muito problemática. Uma coisa é “como as coisas são?”; outra é “como
as coisas deveriam ser?”. Dizer que algo é da maneira que é não dá razão alguma
para concluirmos que, então, esse algo é automaticamente bom ou correto.
A falha em todas
essas tentativas de se justificar o especismo está em não se perceber que a
principal razão para se respeitar seres humanos não se dá por estes serem
humanos, nem por serem racionais, e nem porque na natureza cada animal
privilegia os da sua espécie, e sim, simplesmente porque seres humanos são
capazes de sofrer e desfrutar. Essa razão muito simples é o que melhor explica
o dever de se respeitar alguém. Alguém precisa de respeito porque valoriza
estar em um determinado estado e não em outro e é vulnerável. Para isso, é
preciso ser senciente (capaz de sofrer e desfrutar). Todo ser senciente prefere
desfrutar de experiências mentais positivas ao invés de negativas. Todos nós
reconhecemos que sofrer e/ou ser privado de desfrutar de algo bom, é ser
prejudicado. Ser capaz de sofrimento/desfrute é uma razão suficiente para se
respeitar alguém, pois então esse alguém pode ser prejudicado ou beneficiado de
acordo com o que decidirmos. Para haver possibilidade de alguém ser
prejudicado, basta ser senciente, independentemente de espécie, de grau de
racionalidade e do que acontece na natureza. A mesma razão que explica por que
devemos respeitar humanos explica ao mesmo tempo porque devemos respeitar
qualquer ser capaz de sentir, independentemente de espécie.
Outro resultado
infeliz do debate é que por vezes centra-se a discussão em se saber se houve ou
não maus tratos durante o experimento. O que isso parece indicar é que, então,
ambos os lados do debate estão a aceitar a seguinte premissa: “se não houver
maus tratos durante um experimento, então, ele é automaticamente justificado”.
Essa premissa só faria sentido se sofrer fosse a única maneira de se prejudicar
alguém. Mas, existe pelo menos outra maneira bem conhecida de se prejudicar
alguém: assassiná-lo, quando ainda lhe resta algo de bom a ser desfrutado.
Alguém poderia
objetar, dizendo que é isso que explica a diferença entre humanos e não humanos
quanto ao erro em matar: os primeiros fazem planos para o futuro e entendem o
que é a morte; os segundos não. Essa objeção tem dois erros. O primeiro erro,
menor, é que existem humanos (bebês, idosos senis, portadores de determinadas
doenças mentais, etc.) que também não entendem o que é a morte e também não
fazem planos para o futuro. O segundo erro, maior, é confundir “ser
prejudicado” com “saber que será prejudicado”. A morte, quando é um dano, é um
dano não devido ao que ela faz estar presente, mas devido ao que ela priva. Ela
priva alguém de desfrutar sensações boas no futuro. E isso é assim independentemente
desse alguém saber o que é a morte, ter feito planos para o futuro, ou sofrer
antes da morte. Assim sendo, todos os seres com possibilidade de desfrutarem
algo de bom no futuro são danados ao morrer. Então, não é tão importante
discutir se houveram ou não maus-tratos durante os experimentos, haja vista que
existem fortes razões para se objetar aos experimentos mesmo quando não existem
maus-tratos, já que os animais, de qualquer maneira, são mortos depois.
Por fim, um
comentário sobre outro argumento muito freqüente nos debates. Os defensores da
experimentação acusam os defensores dos animais de hipocrisia por se
beneficiarem da exploração animal (usarem remédios, comer comida de origem
animal, andar de ônibus, por exemplo). Disso, eles concluem que, então, a
exploração animal está justificada. O problema é que essa conclusão não
seguiria da premissa nem que a premissa fosse verdadeira. É verdade, a acusação
de hipocrisia poderia ser verdadeira em alguns casos (por exemplo, parar de
comer comida de origem animal é algo que se pode fazer facilmente). Contudo,
outras coisas são muito mais difíceis de fazer, haja vista que absolutamente
quase tudo em nossa sociedade é feito à base de exploração animal.
Mas, a questão não
é essa. Mesmo que todas as acusações de hipocrisia fossem verdadeiras, será que
segue daí que, então, a prática que o suposto “hipócrita” está a criticar tem
boas razões a seu favor? Obviamente que não. Uma questão é “qual o caráter do
interlocutor?”, outra é “qual a coisa certa a se fazer?”. Imagine, por exemplo,
que o tratamento de água fosse feito a base de trabalho infantil. Ninguém pode
deixar de tomar água. Será que segue daí que então não existem razões contra o
trabalho infantil e que alguém deve ser proibido de objetá-lo? E, supondo que o
trabalho infantil fosse utilizado em um produto não necessário, como café.
Supondo que quem estivesse a protestar tomasse café e que a acusação de
hipocrisia fizesse sentido. Segue daí que não existem boas razões para se
abolir o trabalho infantil? Obviamente que não. O interlocutor, no nosso
exemplo fictício, apesar de hipócrita, estaria a fazer a coisa certa ao
criticar a exploração. Acusar os defensores dos animais de hipocrisia com
vistas a concluir que a experimentação animal se justifica é nada mais do que
um caso da famosa falácia ad hominem. Aliás, parece que o fato de
quase tudo em nossa sociedade ser feito à base de exploração animal é mais uma
razão para aboli-la, pois então mostra que sofrimento e morte estão sendo
impostos a um número gigante de seres sencientes.
Essas questões
deveriam ser o ponto central do debate. As razões acima são as razões mais
básicas para se rejeitar o especismo, e, com ele todas as práticas
exploratórias sobre os não humanos, incluindo a experimentação animal. É a
partir daí que o debate deveria se desenvolver. E é por não se estar discutindo
os argumentos principais e se estar a perder tempo com argumentos que já
assumem de antemão que o especismo está justificado que nosso entendimento das
questões éticas que envolvem animais não humanos está, infelizmente, em um
nível dos mais rasos.
Mestre em Ética e
Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC),
licenciado em Educação Artística com habilitação em música pela Universidade do
Estado de Santa Catarina (UDESC), colaborador da revista eletrônica Pensata
Animal, colunista do site ANDA e autor do blog Desafiando o Especismo.