segunda-feira, 27 de julho de 2020

A NUDEZ NA ERA TECNOLÓGICA


O homem tradicional foi treinado, desde o nascimento, por uma sociedade burguesa e puritana, a ignorar a existência do seu corpo. Todo o progresso do mundo ocidental foi mesmo baseado na repressão sexual e, portanto, na negação do corpo.

O homem escravizado por minorias privilegiadas precisava trabalhar, ao contrário do primitivo, que só tirava da natureza o necessário para sua sobrevivência.

Assim, o primitivo possuía uma sexualidade livre e o agricultor tradicional, ao contrário. Precisou reprimir esta mesma sexualidade para pode dedicar-se ao trabalho. Este trabalho, entretanto, não o beneficiava e, sim, aos senhores da terra que pertencia.

Assim, ao lado da escravização do trabalho veio a repressão sexual.

Ainda hoje, quando esta situação está em vias de ser rompida pelo advento de uma economia de abundância em que não é mais necessário a escravização ao trabalho, o homem reage ao seu corpo em padrões tradicionais. E o corpo nu é sentido, invariavelmente, com uma ameaça àqueles a quem foi inculcado que a seriedade, a responsabilidade e o controle são valores a serem construídos sobre a negação do corpo.

Nas sociedades primitivas, ao contrário, a nudez é uma forma de adaptação à vida. O corpo é simplesmente aceito como ele é. A criança costumava-se com a nudez desde o momento que nasce. A cada instante, toma contato com a nudez global: a nudez das outras crianças da sua idade, meninos e meninas, a dos adolescentes, das mulheres e homens feitos, da mãe que espera o filho ou amamenta e também dos velhos.

Assim, a criança vai tomando uma consciência profunda do sexo a que pertence e também daquele que não pertence. A menina vai aprendendo que, se souber esperar, um dia ele também será mãe e o menino que, se conseguir fazer bem feitas as ações masculinas que esperam dele, será um homem forte, igual aos mais velhos.

Mas o nosso mundo ocidental reprimido é um mundo de paredes. Desde que nascemos, as roupas nos separam de nosso corpo. Assim como na infância as paredes das escolas separam as crianças das diversas idades e dos dois sexos, as paredes dos escritórios, das fábricas separam, mais tarde, os seres humanos das diversas classes.
                             
O sexo como tabu

Por isto, desde que nascemos, temos uma noção menos nítida, mais obscura do ser humano, que os povos primitivos. E, sem esta noção, nunca nos conhecemos e nos aceitamos inteiramente. Por isso, a complexidade e a diversidade da maneira de viver no mundo dos civilizados, as relações básicas entre os seres humanos e, principalmente, entre o homem e a mulher são distorcidas.

As diferenças primárias entre homens e mulheres são tão importantes que o seu conhecimento ou desconhecimento na infância, modela de maneira diferente a visão e conhecimento que a criança tem de si mesma, dos outros, da vida e do mundo em que vive. Antes de conhecer intelectualmente, a criança conhece através do corpo e da reação dos outros a sua feminilidade ou a sua masculinidade. Por isso, as crianças, primitivas tornam a sexualidade a primeira identificação de si mesma.

Mas, no nosso mundo, o sexo é tabu: não se pode tocar nos órgãos sexuais, não se pode vê-los, a realidade da gravidez é cuidadosamente escondida das crianças, as palavras que designam os genitais são substituídas por outras menos chocantes.

Enfim, o sexo é feio, é sujo.

Na nossa sociedade, pois a diferença entre os sexos, tem que ver apenas com diferença de roupas, de papéis, de privilégios. Mas na sociedade em que a diferença dos sexos é baseada na diferença física, a criança se assume profundamente e inconsciente através do seu sexo.

Evolução do Papel da Mulher

Talvez o fato descoberto pela psicanálise de que a mulher se considera um ser castrado, um homem incompleto, provenha muito do obscurecimento do conhecimento do seu papel, do fato de muitas mulheres viveram sós ou de muitas outras não terem filhos. Na sociedade primitiva, ao contrário, era o homem que se sentia atemorizado diante do mistério do nascimento da criança no corpo da mulher.

Assim, compensava este temor por ritos de iniciação que consistem em imitar um novo nascimento (dentro do homem). Hoje a inveja do pênis; na sociedade primitiva, a inveja do útero.

Assim, hoje inverteram-se os papéis: no mundo primitivo, devido à evidência física, a mulher era considerada como a mola biológica da espécie. No mundo ocidental reprimido, é o homem cheio de privilégios que atemoriza a mulher...

E, uma vez que não é feia a identificação física, o edifício é solapado nos seus alicerces: as outras identificações, a sociológica e a psicológica, também não se fazem. Nem homem, nem mulher sabem hoje qual é o exato papel de um em relação ao outro e dos dois em construção do mundo. Só agora está se descobrindo a função sociológica da mulher na superação do subdesenvolvimento, função esta que lhe foi negada milenarmente. Só agora, também, está havendo uma descontração social em relação à nudez e talvez estes dois fatos, o físico e o sociológico, estejam mais intimamente correlacionados do que se pensa.

O homem e a mulher do mundo tecnológico estão em vias rápidas de mutação. São mesmo mais diferentes de seus pais tradicionais ainda vivos do que estes o eram dos egípcios ou dos gregos. Com a automação e a difusão generalizada da informação, a repressão começa a ceder. O papel do homem e da mulher está em vias de redefinição profunda. O mundo do futuro ou será um mundo do homem e da mulher juntos, com o primitivo, ou a humanidade caminhará para uma catástrofe total.

Cada vez mais em nossas praias, homens e mulheres de todas as idades e condições exibem uma seminudez descontraída. As crianças da idade tecnológica talvez se sintam mais integradas no grupo humano por se sentirem integradas no grupo alegre e sadio da orla marítima. Neste caso, viva Copacabana, Ipanema, Leblon, Guarujá, institucionalização do encontro humano...

Polarização do Nu

A polarização sobre o corpo nu só pode ser superada quando este corpo for aceito realmente por todos como um dado primeiro. A nudez erótica e clandestina ainda é fruto da negação do corpo. A nudez aceita, global e natural, abre caminho para a aceitação de si e do mundo, de uma maneira por nós ainda desconhecida. Na nudez clandestina dos stripteases e das revistas pornográficas, a mulher chega ao máximo do objetivação e desaparece como pessoa. Seus seios expostos são explicitamente feitos para o prazer e implicitamente negados para a maternidade.

Na nudez aceita, prazer e maternidade se integram. As diferenças básicas que foram feitas para a perpetuação da espécie retomam o seu papel. O homem terá saciado a sede da forma da mulher, que lhe foi milenarmente negada. E esta, também, terá reaprendido os caminhos do corpo do homem. Nem homem nem mulher procurarão no outro um fantasma, uma forma exterior, como hoje procuram. Eles saberão que debaixo de uma forma perfeita pode esconder-se um ser neurótico, reprimido ou incapaz de amar. Saciados da forma não se prenderão mais nela e irão ai íntimo do de gozar e de amar, o erotismo em toda a sua pujança que independe de forma e até de idade.. O prazer então liberto poderá brotar do ser profundo de um, para o ser profundo de outro.

E assim, homem e mulher poderão realmente vir a amar-se a integrar-se...

Rose-Marie Muraro

Fonte: Revista de Cultura “Vozes” N° 1 Janeiro\Fevereiro de 1971
Publicado na Revista Brasil Naturista nº 08 Dez/Jan/Fev 2009
Publicado no livro “Verdades que as roupas escondem” em 2009