Eco
Silencioso
Paulo Pereira
Rio – Nov/ 2014
Um
dia, Manoel de Barros escreveu: “Com pedaços de mim eu monto um ser
atônito”. Agora, releio, no silêncio
insone da madrugada, as velhas páginas meio inquietantes do pequeno-grande
“Livro Sobre Nada”, do poeta-passarinho Manoel, o conhecido pensador recluso do
Mato Grosso, das terras exuberantes do grande Pantanal... Vou, de novo, ao
encontro das possíveis essências fundamentais, talvez das sagradas profundezas
da natureza, como nos propõe, meio ansiosa, a bióloga Ursula Goodenough, a
buscar outros horizontes, reflexões que criem contrapontos, sobretudo,
possíveis alternativas. E a poesia de Manoel é por certo uma preciosa
alternativa, inteligente e lúcida, que contrasta com tantos descaminhos da vida
moderna. Viajo, então, na criatividade e na observação aguda do velho Manoel de
Barros, o mago apaixonado pela vida sem complicações, pela vida nua, pela
simplicidade natural e pelos pássaros multicoloridos. Enquanto alguns afoitos
tecem desconstruções e vivem proclamando tolices complexas, Manoel nos oferta,
humilde, belas e perenes sutilezas, verdades delicadamente reveladas, quem sabe
até os brilhos incomparáveis das asas de uma borboleta, essas pétalas que
flutuam no ar... E eu, Paulo, quero enriquecer meu olhar e, com ele, a minha
percepção da poesia incomum de Manoel, com a exata colocação, sobretudo
refinada, de Lúcia Castello Branco, registrada nas orelhas do livro de Manoel.
Lúcia salienta a imagem-mônada do livro, talvez o sentimento longínquo de uma coisa
esquecida, certamente um lápis numa península... E sempre, afinal, o lápis de
Manoel, o peregrino da natureza indomável, o doce punhal de grafite a rasgar
espaços e expressar pensamentos. Lúcia destaca que Manoel de Barros sempre
colecionou epígrafes, citações, referências, notas de rodapé de página,
prováveis pistas falsas para encontrar o nada. Para Lúcia, Manoel acaba
mostrando-se por inteiro na sua poética da desaprendizagem, em um modelo de
expressão excepcional. Tento, então, mergulhar nas afirmadas sutilezas da
poesia de Manoel, e experimento êxtases e espantos, revelações e buscas
intermináveis. Aprendo, sobretudo, com Manoel que, para ter mais certezas,
tenho que me saber de imperfeições... Faço escolhas. Construo caminhos. Uso o
lápis também para sujar minhas folhas de papel, para traçar talvez rudes
picadas pelos emaranhados dessa vida. Manoel, concordo com ele, diz não
precisar do fim para chegar. Se queremos chegar a nada, por exemplo, devemos
descobrir simplesmente a verdade. Manoel sempre perseguiu o nada, o grande
nada, tudo que use o abandono por dentro e por fora. Manoel me disse, então,
nas páginas do seu livro:
“Sou
um sujeito cheio de recantos,
Os
desvãos me constam.
Tem
horas leio avencas
Tem
hora, Proust.
Ouço
aves e beethovens.
Gosto
do Bola-Sete e Charles Chaplin.”
E
ainda acrescentou:
“Opero
por semelhanças...
Retiro
semelhanças de árvores comigo.
Não
tenho habilidade para clarezas
Preciso
obter sabedoria vegetal
(Sabedoria
vegetal é receber com naturalidade uma rã no talo)”...
Manoel
de Barros não é um ponto nem é uma vírgula; ele é uma série de reticências...
Mas disseram ainda agora (novembro de 2014) que Manoel de Barros teria, enfim,
morrido. Duvido muito. Manoel é um encantado atemporal, que reside, teimoso,
nos preciosos pormenores. Manoel, passarinho misterioso, deve ter mesmo voado,
livremente. Manoel é, afinal, um doce joão de barro (de Barros), mestre de
construções assimétricas, morador do arco-íris e do vislumbre. Seria até bom
tentar alcançá-lo...
Paulo Pereira